Resumo Conceitual: vivências do espaço
O Grupo Zona de Interferência propõe a intervenção aCerca do espaço para poetizar a
vivência da cidade, por meio de dispositivos que buscam tensionar as fissuras que a “cidade
privatizada” provoca no espaço vivido. Interessa-nos construir uma poética que relacione a
concretude do espaço urbano com a forma como cada pessoa o vivencia, subjetivando-
se/subjetivando-o, uma vez que esse espaço revela-se, cada vez mais, a partir da esfera da
privatização e do consumo, da negação da diferença e da espetacularização da violência. Presente
no desenho e na representação simbólica a ele correspondente, o continente privado da vida é
apresentado, espetacularizado, desejado e gozado cotidianamente.
A importância que a esfera do privado vem tomando no tecido da cidade é visível. E está
presente desde a valorização do transporte individual, em carros carregando apenas um indivíduo,
até a onipresença dos shoppings (templos de consumo, aparência e homogeneidade; monumento
ao privado e ao totalitarismo soft de consumo nada soft), alcançando ainda a esfera da cultura
(fetichizada e demarcada, hoje, como território de marcas – produtos, pessoas – famosas, às quais
agrega valor). Neste processo, encontramos a experiência da rua, território próprio do público e
do político, como “residual”– a rua passa a ser uma fissura da cidade, o resíduo, indesejado,
daquilo que não se pôde privatizar.
Nesta proposta, desejamos tensionar a dimensão da alteridade que subjaz a esse processo
de privatização, posto que os processos de subjetivação produzidos nesta cidade contemporânea,
que entendemos como privatizada, parecem sofrer também um movimento de privatização.
Ainda assim, entendemos que qualquer reflexão sobre a relação cidade/subjetividade encaminha-
nos ao campo político, do mesmo modo como as intervenções urbanas atingem os modos de
subjetivação.
Segundo dados divulgados, a cidade de Salvador sofrerá, em breve, uma intervenção que
mostra-se cada vez mais comum: o monitoramento por câmeras de vídeo, uma velha-nova
tecnologia “orwelliana” de “repressão contra a criminalidade”. Para além de qualquer discussão
sobre a validade de tal mecanismo, consideramos importante pensarmos sobre as condições da
vida política na cidade controlada, bem como sobre os corpos que nela transitam, vigiados.
Cada espaço é habitado de várias formas. Adquire significações múltiplas, dependendo do
observador e de seu objetivo. Os espaços do centro da cidade são diferenciados em relação a
outras partes da cidade: há os que apenas transitam por ele, e há os que o vivenciam de maneira
intensa e diferenciada. São freqüentados não apenas por aqueles que ali moram, mas por milhares
de pessoas – que ali trabalham, que vão às compras, ou que simplesmente o atravessam para ir a
outro lugar. Para o público que faz dele seu cotidiano – moradores de rua, comerciantes,
seguranças, vendedores, desocupados –, estes não apenas enxergam o espaço de maneira distinta
daqueles que apenas passam por ele, a pé, de carro ou ônibus, mas também o ressignificam e
reconstroem.
Foras dos limites móveis do centro, outras significações se aplicam ao espaço, outras
formas de transitar. Dentro ou fora, dentro e fora, do centro da cidade, o espaço urbano é
sempre dispositivo de produção da vida pública, pois possui a dimensão do humano em todos os
seus cantos e em sua produção simbólica.
É o espaço público o espaço do conflito. Contudo, o mundo privado – cercar, controlar,
vigiar, conter, intensificar, produzir – propõe proteger-nos deste conflito que, por sua vez, é
ineliminável. É preciso, assim, tomar a cidade por seu movimento (pela forma como o espaço é
apropriado, produzido e reproduzido), não a perceber apenas por meio de seus aspectos
exteriores. Vivenciar a cidade, com suas cercas e muros, delírios de controle e segurança.
Materializar e tornar visível o que já se faz familiar e introjetado – subjetivado e desejado. Enfim,
entendemos que intervir nesse espaço é transformar sua vivência cotidiana.
A proposta da interferência “aCerca do espaço” é poetizar a relação de cada um com o
espaço que o cerca e com as cercas que construímos ao nosso redor. Cercamo-nos para não
sermos invadidos, para não sermos atingidos e atravessados. Para nos livrarmos do impoluto e do
indesejável. Com isso nos tornamos refratários ao desconhecido e ao próprio desejo do outro.
Ao construir as cercas que buscam impedir e acabam por negar ao outro, geramos uma falsa
impermeabilidade – a recusa de sermos atingidos pelo outro, exterior a nós. São cercas e muros
erguidos cotidianamente pelos muros reais e simbólicos, erguidos na espetacularização da
violência. Tornamo-nos reféns desse imaginário, de nossos medos e do que conhecemos.
Tolhemos a troca e a proximidade do outro – muitas vezes não a proximidade física, mas
justamente a subjetiva, a dimensão dos afetos: afetar-se.
A materialização da cerca é a concretização de nossas estratégias de privação de contato, de
aceitação do que é apenas semelhante a nós mesmos.
fotos de Ícaro Vilaça, Diego Mauro e Paola Berenstein Jacques
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